O Jardim de Joana

Joana fazia aquele percurso durante todas as manhãs daqueles últimos vinte e poucos anos. Numa mão levava sementes, na outra pá e regador. Os pais morreram e, quando ainda era uma criança, foi para o convento com Madre Carlota, uma amiga da família. O convento era distante da cidade, não tinha luz elétrica e pela estrada só se conseguia passar a pé ou de bicicleta. Madre Carlota era sua amiga, mãe e mestra. Ensinou-lhe piano, latim e floricultura. Joana cuidava dos jardins do convento e tinha um embaixo da janela do seu quarto.Cuidava das flores como se fossem filhas.
Seu Patrício, o carteiro, era quem trazia as sementes de todas as partes do mundo, encomendadas por Madre Carlota. A madre atendia a todos os pedidos de Joana, com exceção das rosas vermelhas. Ela não julgava ser de bom tom cultivar rosas vermelhas num convento.
Há mais de dois meses o convento não recebia novas correspondências devido a uma queda que Seu Patrício sofreu quando voltava para casa. A vaga foi preenchida por Mário, um jovem de vinte e poucos anos que por mal saber andar de bicicleta, passou um fim de semana praticando. Foi até o convento para conhecer melhor o caminho e sentiu-se atraído pelo perfume que vinha de lá de dentro. Na entrada, um corredor de palmeiras ia dar num pomar, do lado esquerdo uma igreja, do lado direito uma praça ostentava uma cruz de madeira e nos fundos os dormitórios e salas de aula. Contornando a cerca do convento, Mário avistou um jardim que o dispersou em flores simetricamente coloridas. Foi despertado pelo abrir da janela de Joana. Fitaram-se o tempo de encherem os pulmões com o ar do jardim. Mário arrastou-se pelo chão chegando até sua bicicleta. Ouviu o grito de Joana, mas não ficou para se justificar, voltando para casa. Com o barulho, irmã Antônia, uma vizinha de quarto foi ver o que havia acontecido. Joana disse que tinha tido um pesadelo.
De nada adiantou os treinos que Mário fez, pois além do susto que passou com Joana, o peso das correspondências transformava aquele caminho em outro. Quando chegou em frente ao portão fez o sinal da cruz e tocou a campânula. Há mais de dois meses as irmãs não ouviam aquele som. A janela de Joana foi a primeira a se abrir e também foi a primeira a sair do quarto. As janelas abriam e fechavam num compasso musical. Mais uma vez Mário ficou atônito com o convento e o dançar dos hábitos ao vento faziam-no sorrir. Como quem toma um baque no peito seu olhar cruzou com o de Joana. O baque a fez parar. As irmãs correndo ultrapassaram-na balançando-lhe o hábito. Pensou em voltar e sentiu o braço da Madre a contornar-lhe o pescoço. Uma sucessão de bons dias povoou o espaço, o grande portão se abriu e as irmãs aguardavam a entrega das encomendas da Madre. Quando Mário terminava de entregar as correspondências, Madre Carlota devolveu-lhe uma caixa dizendo ser para Irmã Joana apontado-a atrás das outras irmãs. Tocaram-se nas pontas dos dedos quando ele lhe passou a caixa. Enquanto Mário distribuía as correspondências, Joana enfiava os dedos entre as sementes e as cheirava. Olhava para Mário e sorria encabulada por ter gritado daquela forma na noite anterior.
Nas idas e vindas Mário já podia ver as sementes transformarem-se em flores. Joana falava sobre o convento e ele do povoado. As flores eram sua conexão com Deus e Mário era a sua via de comunicação com o mundo. Joana falou-lhe sobre a restrição da Madre quanto às rosas vermelhas e do seu desejo de plantá-las. Então Mário levou-lhe a encomenda secreta. Neste dia choveu muito e Mário passou o dia no convento. Ele ouviu Joana tocar piano, comer, falar, calar. Um silêncio cúmplice de uma afinidade natural. Preocupada com a situação da estrada, Madre Carlota ofereceu abrigo a Mário para passar a noite. Temiam que acontecesse com ele o mesmo que aconteceu a Seu Patrício. A chuva tornava a estrada escorregadia e perigosa por causa dos barrancos.
No quarto escuro e úmido destacava-se um jarro de flores que Joana havia colhido para Mário. O cheiro que exalava fê-lo dormir. Durante o sono sonhou com Joana numa janela em frente à sua, tendo uma estrada no meio sem fim para direita e para esquerda. Os pingos da chuva transformavam-se em botões de rosas que antes de tocarem o chão desabrochavam e secavam. Joana estendeu a mão para apanhar uma flor e um espinho furou-lhe o dedo. A chuva aumentou e as rosas já cobriam a paisagem transbordando pelas janelas. Eram três horas e Joana ainda não dormia. As paredes lhe comprimiam até expulsar sua alma que vagava cega pelo convento. Mário acordou assustado e abriu sua janela no mesmo instante que Joana. Num ímpeto de culpa fecharam também ao mesmo tempo. Ele não sabia se ainda estava sonhando. Abriu de novo a janela e não mais a viu. Joana ajoelhada atrás da porta rezava e suava. Preocupado com o sonho Mário foi até o quarto de Joana e bateu na porta. Joana pálida a abriu caindo sobre os braços de Mário dobrando os joelhos encrustados de sementes. Mário levou-a para a cama, abriu a janela e lhe deu água. Aos poucos Joana foi acordando e ouvindo Mário contar-lhe sobre o sonho. Arfavam. O ar tinha cheiro de flor, hálito, chuva, suor, saliva, sêmen e semente. Uma mistura de sonho, pesadelo e realidade. Mário voltou para casa antes do amanhecer.
O tempo passou e Joana aguava ansiosa a roseira secreta que Mário havia lhe dado, mas desconhecia a semente que dentro dela ele havia plantado. Quando descobriu não disse nada a ninguém, rompeu com seus encontros clandestinos com Mário, escondia a barriga com faixas apertadas e só saía do quarto para cumprir os horários do convento. Numa manhã Joana escavou seu corpo e arrancou pela raiz a muda que lhe brotava. Foi ao jardim, numa mão semente, na outra pá e regador. As lágrimas regaram o solo.
A partir deste dia não abria mais a janela e enjoava-se com o perfume. Numa manhã de segunda-feira bateram na porta. Nada disseram. Bateram de novo. Não era Mário. A saudade era muita, mas Joana era uma freira, e ele não podia forçá-la a lhe amar e buscava esquecer o que passou. Joana levantou-se da cama e abriu a porta. Era irmã Antônia. “Eu vi”. Disse ela. Joana bateu a porta. Não sabia o que era pior, irmã Antônia ter visto a fecundação ou o plantio. Joana sentiu que precisava favorecer o brotar das vidas que enterrou ali. Precisava de um corte diagonal, oposto ao que já tinha feito no peito e mostrar para o mundo a cicatriz. Toca a campânula. As irmãs abrem as janelas, saem em direção ao portão. Joana, ainda de pijama, abriu a porta, abraçou irmã Antônia como se despedisse de todas as irmãs, de todas as flores, de cada canto daquele convento através daquele corpo que abraçava. De pijama correu em direção ao portão ultrapassando as irmãs, balançando-lhes os hábitos. Parou em frente a Mário e disse: “Me leve daqui.” Encabulado, ele pegou as correspondências, colocou-as no chão e virou a bicicleta. Ele barbeirou uns cinqüenta metros com Joana na garupa a acenar para as irmãs. Caíram. As irmãs estáticas observavam a cena. E os dois, desastrosa e apaixonadamente, sumiram na paisagem. Naquela tarde, uma rosa vermelha brotou no jardim de Joana.
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