De amantes 94

“As potencialidades criativas afluem da vida espiritual inerente à consciência e às suas inquietudes. E a realização dessas potencialidades nunca se afigurou aos homens como um divertimento, mas sim como uma necessidade e um real desafio. A arte é uma necessidade de nosso ser, uma necessidade espiritual tão premente quanto as necessidades físicas. A prova disso é o fato irrefutável de todas as culturas na história da humanidade, sem exceção, desde o passado mais remoto até os tempos presentes, terem criado obras de arte, em pintura, escultura, música, dança, como expressão do essencial da realidade de seu viver – uma realidade de dimensões bem maiores do que a utilitarista. As formas de arte representam a única via de acesso a este mundo interior de sentimentos, reflexões e valores da vida, a única maneira de expressá‐los e também de comunicá‐los aos outros. E sempre as pessoas entenderam perfeitamente o que lhes fora comunicado através da arte. Pode‐se dizer que a arte é a linguagem natural da humanidade.” (Fayga Ostrower)

FAYGA OSTROWER

Hoje ela faz noventa anos!
Parabéns e obrigado por tudo!
Em algum lugar no mistério da nossa existência você continua a agir sobre nosso fazer.
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Até a próxima!

A Dança (em) Comum

A dança (em) Comum

          A dança da vitória, a dança da queixa, a dança do grito, a dança da paixão, a dança anti-stress, a dança da revolta, a dança do presente, a dança como elogio, a dança como agradecimento, a dança como respeito ao seu próprio corpo que pensa, crê e move para se comunicar, a dança do desabafo, a dança da opinião, a dança particular, a dança do pulmão, a dança do suor, a dança da saúde, a dança dos amigos, a dança do barulho, a dança da dança. A dança ciente das partes que a compõe e suas interações. A dança consciente de ser puramente dança onde o corpo move-se a partir dos estímulos que recebe seja da música ou do silêncio, da exteriorização ou da introspecção, da estética ou da reflexão.
Quando um sujeito põe-se a dançar espontaneamente ele automaticamente entra em contato com a sua cultura corporal e passa a resgatar suas idéias de dança transformando seus movimentos em passos. Agora mesmo ponho-me a dançar com as palavras resgatando o que li, vi e senti de dança nestes quinze anos de contato com esta modalidade artística. Procuro fazer isso de forma espontânea sem recorrer ou citar as fontes inspiradoras buscando uma nova forma de dançar a dança dos artigos. Aos autores que li, aos dançarinos que assisti, às sensações que senti, aos coreógrafos e professores para os quais eu dancei dou um caráter de guias, de estímulos aleatórios que ao se fundirem em texto vão se transformando em frases espontâneas, comuns e únicas. Recorro à minha fé na dança para expressar o que em mim estas idéias produziram de forma eficaz o reconhecimento da minha liberdade.
Convido a todos que estão lendo este texto a dançarem com a consciência de que estão dançando, sem paranóias, sem complexos, sem regras, sem vergonha e sem culpa. Transforme a vergonha em autonomia, os complexos em discursos, a culpa em missão particular. As regras surgirão espontaneamente através dos seus próprios limites. O corpo é muito inteligente e vai definir até onde você pode ir e vai criando e quebrando regras naturalmente a cada repetição. Esta será uma dança única e ao mesmo tempo comum. Comum porque todos podem dançá-la, única porque só você saberá com exatidão o que está sentindo e propondo. Com a prática desta dança comum suas idéias e movimentos de dança vão amadurecer em seu corpo, em sua mente, ao seu redor e em torno dos seus. Quanto mais você praticar, mais consciência do que faz você terá, como qualquer outra atividade humana. Comece agora mesmo e você verá que seus amigos, parentes, colegas e médicos notarão a diferença.
Estamos e existimos em movimento da ovulação à putrefação. No dia a dia andamos, corremos, seguramos, soltamos, dirigimos, abrimos, fechamos, puxamos, esticamos, comprimimos, engolimos, expulsamos, abaixamos, levantamos, subimos, descemos, encolhemos, guiamos, seguimos, gesticulamos, atravessamos, esperamos, superamos, transformamos. Estas ações do cotidiano estão gravadas em nossos músculos e são os estímulos automaticamente propostos quando decidimos dançar espontaneamente a nossa liberdade de expressão ou quando buscamos criar qualquer célula coreográfica a respeito de determinado tema. Esses automatismos são acumulados ano após ano a cada descoberta de nossas possibilidades motoras, do engatinhar ao digitar, da apreensão de objetos à leitura, da condução de máquinas à relação sexual.
Dancemos o cotidiano em consonância com as nuances do dia a dia. Dancemos o cotidiano numa tentativa de mostrar a existência de uma dança comum. Uma dança que todos nós dançamos todos os dias seja na turbulência do avião, do freio do metrô ou no fechamento do sinal de trânsito. Percebamos que a dança empresta um encanto aos movimentos. É como se pudéssemos rever as ações do dia a dia como rimas urbanas, acasos espaço temporais onde todos nos encontramos em meio ao conhecido e desconhecido da vida. Dancemos entre o céu e o inferno, entre o grotesco e a excelência.
Dançar é uma das maneiras mais eficazes de não estarmos presos à rotina diária dos movimentos repetitivos. A prática desta dança comum e espontânea vai contribuir com o desenvolvimento do sujeito como um todo, trabalhando corpo, mente e espírito concomitantes. A idéia de dança comum surge da minha constatação de um reflexo dançante involuntário que todas as pessoas possuem independente de idade, cor, raça, classe social, escolaridade. Nesta dança as qualidades do movimento vital em parceria com o som fazem surgir uma infinita diversidade coreográfica. Diferentes tipos físicos, étnicos e faixas etárias são capazes de produzir danças que por tão simples e peculiares, transportam-nos para um mundo de propriedades divinas.
Sabendo da inteligência de nosso corpo, das possibilidades da dança contribuir com sua manutenção física e intelectual, o fato de não dançar poderia ser comparado a ter um computador de última geração e só utilizá-lo para sites de bate papo. Não quero dizer com isso que todas as pessoas devam sair dançando e criando espetáculos, mas este texto propõe que se pratique no corpo a idéia da importância da consciência do movimento coreográfico espontâneo como um termômetro da nossa sensibilidade.
Hoje qualquer pessoa pode comprar telas, tintas, gesso, argila, ferramentas e pincéis e adornar suas residências e escritórios com suas próprias obras, bem como comprar um instrumento e começar a compor suas músicas, escrever seus livros e recitá-los, usar o computador para compor as mais diversas modalidades artísticas profissionais ou não. Refletindo sobre esta liberdade artística dos nossos tempos concluo que qualquer pessoa pode usar o seu corpo para expressar suas idéias e sentimentos através da dança. A dança comum não é a dança desta ou daquela região, desta ou daquela parte do corpo, mas a dança que seu corpo solicita e necessita neste momento. A dança comum aqui proposta troca a pompa dos figurinos artísticos por roupas do cotidiano, do palco pela casa, da dança da tv pela dança que você pode registrar e postar no youtube. Uma dança que limpa os poros através da transpiração e as idéias através da imaginação.
Experiência interessante eu tive ao entrar em uma casa de show. O estabelecimento possuía aproximadamente quarenta mil metros quadrados, duzentas mesas com quatro cadeiras de plástico, seiscentas pessoas, dez garçonetes, dois bares, um palco com música ao vivo e uma pista de dança de aproximadamente quatrocentos metros quadrados. A casa cobrava apenas cinco reais para entrar, não possuía ar condicionado e tinha uma segurança precária. Mas a sua principal característica é que a dança estava presente em sua mais vigorosa forma. O público da casa era composto por pessoas que gostavam e estavam ali para dançar. Forró, lambada, arrocha, arroxé, tecnobrega, dentre outras variações do forró e bolero populares eram os ritmos que a dupla composta por uma cantora e um tecladista interpretavam. Dentro da pista era proibido dançar com parceiros do mesmo sexo, dançar sozinho, beijar na boca, dançar sem camisa, de boné, de chinelo, de bermuda, fumar, beber e fazer movimentos eróticos. Estas regras contribuíam para a organização coreográfica da pista que se transformava num verdadeiro espetáculo da diversidade. Existiam casais que nunca saíam da pista e já eram conhecidos por suas habilidades. Claro que muitos estavam na pista para paquerar o que dava tons dramáticos, funcionais e reais à dança muito interessantes. Naqueles que estavam ali dançando por prazer e técnica era possível visualizar o suor enérgico provocado pelas manobras de tirar o fôlego. Por ser um lugar comum, com ritmos de danças comuns, incomum lá era ficar parado. Na pista, profissionais, amadores, paqueradores e curiosos, todos se misturavam numa naturalidade ímpar. O que vale ressalvar é que a casa não era uma casa de responsabilidade social, patrocinada pelo governo, protegida pela polícia militar ou por qualquer outra instituição. A casa era usada e funcionava para e pela dança. A dança estava ali presente única e exclusivamente para ser dançada, usufruída e sua especificidade era a comunidade. Observando um pouco mais comecei a fazer distinção entre os dançarinos. Aqueles que não saíam da pista, que dominavam as técnicas e que sempre eram chamados para dançar, eram mais suados, com sorrisos no olhar, de peitos fortes, de braços rígidos, de passos leves, de ombros alinhados e musculatura firme. Seus movimentos eram mais precisos, graciosos e elegantes, dando mais confiança para quem estava dividindo a dança. Percebia-se a prática em seus corpos. Observei também a curiosidade dos amadores sentados na primeira fila de cadeiras com olhares atentos em cada gesto dos veteranos. Seus corpos pareciam querer pular na pista, numa posição armada como um goleiro diante de um pênalti.
Dentro daquela casa de show eu consegui perceber a cultura corporal sendo passada de geração a geração, a importância da dança para aquelas pessoas e o caráter ritualístico, artístico e terapêutico da dança em um só ambiente. A dança era comum.
A idéia de dar este adjetivo comum à dança pode gerar vários questionamentos aos especialistas que podem indagar sobre a criação de mais um rótulo. Mas este termo comum está sendo proposto numa tentativa de facilitar a comunicação entre a dança e o público em geral. O caráter comum é empregado no sentido de provocar uma reflexão sobre a origem da dança e suas funções na sociedade como treinamento, profilaxia, autonomia, aquecimento, conquista amorosa, adorações, etc. Este pensamento está se formando naturalmente em todo o globo seja nas danças populares dos grandes pop shows ou nas danças sagradas que cada vez mais ocupam os templos das mais diversas religiões no mundo. Vários estilos como dança contemporânea, improvisação, dança livre dentre outros poderiam se encaixar nesta proposta, mais uma prova deste retorno natural que o ser humano tem feito às suas origens através da decodificação dos movimentos.
A natureza nos prova todos os dias a importância do movimento organizado através da sincronia dos pássaros, dos peixes, das formigas, etc. E basta tocarmos determinado ritmo musical perto de uma criança de apenas um aninho de vida para vê-la dançando. Como se o som vibrasse no corpo sincopando com os batimentos cardíacos. Um campo desconhecido que ainda merece muitos aprofundamentos.  

Clênio Magalhães
Governador Valadares (MG) - 2010
Texto Criado para o Caderno ENARTCi