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arte entre a vida e a morte



Maria Farrar

ilustração: Paula Rego





Maria Farrar, nascida em abril,
sem sinais particulares, 
menor de idade, orfã, raquítica,
ao que parece matou um menino
da maneira que se segue,
sentindo-se sem culpa.
Afirma que grávida de dois meses
no porão da casa de uma dona
tentou abortar com duas injeções
dolorosas, diz ela,
mas sem resultado.
E bebeu pimenta em pó
com álcool, mas o efeito
foi apenas de purgante.
Mas vós, por favor, não deveis
vos indignar.
Toda criatura precisa da ajuda dos outros.
Seu ventre inchara, agora a olhos vistos
e ela própria, criança, ainda crescia.
E lhe veio a tal tonteira no meio do ofício das matinas
e suou também de angústia aos pés do altar.
Mas conservou em segredo o estado em que se achava 
até que as dores do parto lhe chegaram.
Então, tinha acontecido também a ela,
assim feiosa, cair em tentação.
Mas vós, por favor, não vos indigneis.
Toda criatura precisa da ajuda dos outros.
Naquele dia, disse, logo pela manhã,
ao lavar as escadas sentiu uma pontada
como se fossem alfinetadas na barriga.
Mas ainda consegue ocultar sua moléstia
e o dia inteirinho, estendendo paninhos, 
buscava solução.
Depois lhe vem à mente que tem que dar à luz
e logo sente um aperto no coração.
Chegou em casa tarde.
Mas vós, por favor, não vos indigneis.
Toda criatura precisa da ajuda dos outros.
Chamaram-na enquanto ainda dormia.
Tinha caído neve e havia que varrê-la,
às onze terminou. Um dia bem comprido.
Sòmente à noite pode parir em paz.
E deu à luz, pelo que disse, a um filho
mas ela não era como as outras mães.
Mas vós, por favor, não vos indigneis.
Toda criatura precisa da ajuda dos outros.
Com as últimas forças, ela disse, prosseguindo,
dado que no seu quarto o frio era mortal,
se arrastou até a privada, e ali,
quando não mais se lembra,
pariu como pôde quase ao amanhecer.
Narra que a esta altura estava transtornadíssima,
e meio endurecida e que o garoto, o segurava a custo
pois que nevava dentro da latrina.
Entre o quarto e a privada
o menino prorrompeu em pratos
e isso a perturbou de tal maneira, ela disse,
que se pôs a socá-lo
às cegas, tanto, sem cessar,
até o fim da noite.
E de manhã o escondeu então no lavatório.
Mas vós, por favor, não deveis vos indignar,
toda criatura precisa da ajuda dos outros.
Maria Farrar, nascida em abril,
morta no cárcere de Moissen,
menina-mãe condenada,
quer mostrar a todos o quanto somos frágeis.
Vós que parís em leito confortável
e chamais bendido vosso ventre inchado,
não deveis execrar os fracos e desamparados.
Por obséquio, pois, não vos indigneis.
Toda criatura precisa da ajuda dos outros



Bertold Brecht


* * *
Aliza Shvarts




Aliza Shvarts é uma performer norte-americana que causou grande polêmica em 2008 com seu projeto acadêmico. A proposta consistiria numa instalação contendo gravações em vídeo e preservadas coleções de sangue que ela extrairia de abortos forçados feitos nela mesma durante nove meses. A idéia era levantar debates a respeito da arte e o corpo humano. Ela realizou as inseminações artificiais de sêmens de voluntários, bem como as auto-induções de procedimentos naturais de aborto, mas sua obra só foi aceita na condição de ficção onde a artista foi obrigada a utilizar sangue artificial na instalação.
Absurdo ou não, polêmico para uns e normal para outros, a obra de Shvarts rendeu-lhe grande popularidade por todo mundo e inspira-lhe atualmente até design de jóias.





Aborto no Brasil


O Brasil passa por um momento de decisão se legaliza ou não o aborto incondicional. Não quero entrar em detalhes sobre a minha posição quanto ao assunto, pois acredito que há casos muito diferentes, e que a justiça deveria analisar suas especificidades. Não sou contra o aborto em relação à dor, pois como carne e imagino a dor que passam os animais abatidos, não sou a favor pois sou contra o assassinato deliberado dos mais fracos pelos mais fortes de uma mesma espécie. Mas em se tratando do Brasil, tenho a opinião de que o aborto é só mais uma questão estatística onde o país busca equiparar-se aos obsoletos rótulos de primeiro, segundo e terceiro mundo.



Opine!

Comentários

Edu O. disse…
ENtrei aqui para te visitar, me deparei com este assunto que não nos permite simplesmente dizer sim ou não, há que se fazer uma reflexão e esses textos são muito fortes.
Anônimo disse…
Oi

Postei no meu blog, o vídeo do trabalho baseado no texto "Maria Farrar". Passa lá para ver.

Abraços
ow balaio, não achei :(, mas estou te seguindo para futuros contatos. volte sempre!

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