MEXEM: Uma discussão sobre as fronteiras existentes entre diversos estilos de dança mantidas por demandas de matrizes ideológicas.

“É som de preto, de favelado, mas quando toca ninguém fica parado.”
(Amilcka e Chocolate)

O trabalho MEXEM é um solo concebido, dirigido pelo próprio intérprete. A obra coreográfica investiga os ícones da cultura de massa e os aborda, enquanto cultura média, como meio de possíveis relações entre as diversas categorias das manifestações artístico-culturais. As considerações advindas destas reflexões podem gerar um material estético-conceitual, logo interpretante, que oriente futuras construções de pensamento facilitadoras da compreensão dos fatores que mantêm e dilatam as fronteiras entre artistas de épocas e estilos diferenciados e seus respectivos públicos consumidores.
O principal objetivo é uma tentativa de atrair o grande público para os espaços de investigação coreográfica, através de uma estratégia golpista onde a obra apropria-se dos signos massificados e os utiliza como mecanismos de difusão e comercialização da contemporaneidade e experimentação artística.

O problema da cultura de massa é exatamente o seguinte: ela é hoje manobrada por “grupos econômicos” que miram fins lucrativos, e realizada por “executores especializados” em fornecer ao cliente o que julgam mais vendável, sem que se verifique uma intervenção maciça dos homens de cultura na produção.
(ECO, 1998:50)




Os maiores desafios destas estratégias de apropriação da cultura de massa como estímulo criativo é o de não assumir uma postura conceitual que pareça colocar a obra como superior à cultura de massa, como protesto, paródia ou parecer um oportunismo gratuito. Todas as referências necessitam ser alteradas com o intuito de ganhar uma ambigüidade rimando com as idéias autorais sobre elas. Essas alterações demandam adequações através de recuos e aproximações que darão à obra uma característica típica do discurso poético, ressaltando a natureza comum dos anseios criativos contemporâneos: transformar e hibridizar a realidade que nos rodeia.

Toda vez que um grupo de poder, uma associação livre, um organismo político ou econômico se vê na contingência de comunicar-se com a totalidade dos cidadãos de um país, prescindindo dos vários níveis intelectuais, tem que recorrer aos modos de comunicação de massa, e sofre as regras inevitáveis da “adequação à média”.
(ECO, 1998:50)


As teorias da dança contemporânea pregam uma doutrina das práticas corporais em respeito à multiplicidade, propagando uma idéia de que a dança encontra-se em todos os corpos interessados em pesquisar e conhecer um pouco mais sobre suas capacidades motoras e criativas em parceria com idéias e especificações alheias. Também é muito comum depararmos com espetáculos de dança contemporânea apresentados em locais públicos como ruas, praças, estabelecimentos comerciais, etc. onde os intérpretes vestidos casualmente confundem-se com os transeuntes propondo de forma inusitada uma nova visão do corpo, da dança e do espaço cênico. Logo reside aí uma promessa de que qualquer pessoa é capaz de buscar uma decodificação de movimento própria, de dizer algo através da dança, de trocar idéias de corpo e mundo através de intercâmbios e melhorar sua qualidade de vida através da prática da dança. Assim como o sujeito comum interessado em experimentar a dança contemporânea necessita adaptar seu corpo a novos padrões de movimento, a dança ao tornar-se acessível a todos também necessita adaptar-se ao meio em que atua para realizar com êxito as trocas necessárias para a construção de um trabalho cooperativo e altruísta.
Este trabalho pretende levantar questões que suscitem idéias de dança enquanto entidade comum a vários estilos definidos pela sociedade como dicotômicos, como: clássico e híbrido, técnico e conceitual, tradicional e vanguardista, erudito e popular. A intenção é fazer emergir uma consciência da existência da dança como elemento comum entre estas partes, como meio eficaz de aproximação destas categorias e de compreensão de experiências aparentemente distantes. É uma oportunidade de aproximarmos dos elementos fundamentais da dança que nos une e também nos distingue: tempo, espaço e forma. São as inúmeras possibilidades de manipulação destes elementos que modificam o movimento coreográfico.
A utilização destes elementos é datada desde os primórdios da humanidade comprovada pelas pinturas rupestres que revelam em sua estética movimentos harmônicos com propriedades coreográficas explícitas como sincronia, equilíbrio, esforço e técnica. O que nos faz perceber estas propriedades é a variação angular e rítmica das articulações do corpo humano. Cada tema, técnica, estilo, sociedade adota distintas maneiras de tratar essas articulações. Nossa condição bípede impõe à articulação coxofemoral uma função transformadora radical onde qualquer mudança espacial, formal ou rítmica de suas partes é capaz de transportar-nos para uma infinita cadeia de associações interpretativas podendo mudar radicalmente a nossa opinião sobre determinada obra coreográfica.
Analisando diversos estilos e técnicas de dança sobre a ótica das articulações podemos perceber a relevância que a articulação coxofemoral exerce sobre a qualidade de movimento. Além de sua importância técnica, o quadril carrega em si, enquanto signo, uma série de significantes que suscitam sentidos de gênero, fertilidade, necessidades fisiológicas, locomoção, sensualidade e espiritualidade. Essa característica não estática geradora de signos faz do quadril um ponto referencial para estudo das relações entre os mais diversos estilos, promovendo inusitadas constatações da sua relevância no movimento artístico.
Seguem abaixo algumas danças onde o quadril exerce considerável função:
• Danças ritualísticas
• Balé clássico
• Dança moderna
• Danças tradicionais
• Danças folclóricas
• Danças contemporâneas

Da dança ritualística ás experiências conceituais, podemos perceber uma grande diferença entre as variações de formas, planos e dinâmicas do quadril. A soltura ou a contração, a pulsação ou estabilização da articulação coxofemoral vai depender das demandas das matrizes ideológicas das sociedades.
Em MEXEM o quadril ganha um caráter significativo e torna-se uma interface dentre os diversos estilos de dança classificados seja pela função, época, público ou qualidade de movimento. O quadril torna-se, simultaneamente, um elemento divisor e de união podendo ser pensado como ícone das experiências dançantes e suas dissonâncias estéticas funcionam como um mecanismo de desenraizamento cultural e estilístico.
A maioria das danças de massa brasileiras faz uso explícito do quadril em referência ao ato sexual. Essa referência gera uma censura por parte da escola, igreja e família destinando este tipo de dança para os eventos adultos onde há grande consumo de drogas e de álcool que encorajam seus seguidores a executarem-nas numa catarse estonteante. Movidas pelas polêmicas geradas as crianças brasileiras imitam os ‘passos’ destas danças fazendo com que se erotizem precocemente. A coreografia MEXEM aborda a tempestiva atmosfera do mundo proibido da cultura de massa brasileira. A coreografia consiste na fragmentação de um vasto vocabulário gestual pesquisado a partir das danças dos bailes funk, festas carnavalescas, danças eróticas de boates, forrós, arrochas, dentre outros. A idéia é fazer com que o público se identifique com estes signos, espere uma coreografia conhecida e surpreenda-se com uma dança diferente que requer sensibilidade, charme, equilíbrio, acrobacias, habilidade de assimilação de movimento e articulação entre carne, osso, músculo, pele e cérebro. A sensualidade aparece de forma sutil e interrompida, ao ponto de manter a ingenuidade das crianças que costumam dançar os funks sem a noção do que a letra insinua e provocar o mesmo frenesi naqueles que curtem as letras e as danças utilizando-as nos bailes para conquistar status entre os possíveis parceiros sexuais.

...a história da arte é instrutiva, pois mostra como a mudança de estilo é causa e efeito de mudança de sensibilidade.
(MAFFESOLI, 1995:26)


Críticos, intelectuais, eruditos e vanguardistas consideram a cultura de massa uma grande aberração artística e classificam-na apocalipticamente como um sintoma de uma possível extinção da genuína natureza artística. Esta aparente atmosfera banal da cultura de massa esconde um emaranhado de informações que agregado à rede de conhecimento técnico de criação pode levar aos grandes públicos idéias de transformação do movimento enquanto meio de experimentações do próprio corpo numa dinâmica livre e pessoal.
Ao contrário da dança de massa acessamos a música de massa involuntariamente através das rádios, TV, vendedores de CD pirata, porta malas sonorizados, propagandas em carros de som e pela evocação das pessoas que nos rodeiam. É comum ouvir em alto e bom som um funk oriundo de uma caixa amplificadora isolada em meio a um lugar comum em plena atividade urbana comercial, mas é raro ver em alta e boa resolução um corpo ou vários corpos dançando este mesmo funk neste mesmo lugar. A cultura de massa entra em nossa rotina e mesmo afetados por uma imposição exterior, não podemos controlar facilmente o desejo selvagem e carnal de nos embalarmos com o som percebido de uma percussão, por exemplo. Esta involuntária e pulsante vontade de dançar acaba reverberando pelo corpo, levando-nos a um simples bater de pés ou um balançar de ombros e cabeças.
Em MEXEM a cultura de massa é abordada como um rico nutriente capaz de fertilizar o terreno criativo para a criação coreográfica em interação com a população leiga à arte contemporânea, experimental e conceitual.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ECO, Humberto – Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1998.
PEASE, Barbara and Allan – The defininitive book of body language. Rio de Janeiro: GMT, 2004.
MAFFESOLI, Michel – A contemplação do mundo. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1995.
ALMEIDA, Alberto Carlos – A cabeça do brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2007.

vídeo MEXEM 2009