Auto-discussão no quintal


Você morde os pés dos dentes
Eu beijo o pescoço da língua
Você disfarça em panos quentes
Eu transformo as dores em íngua

Você sublima amando álcool
Eu furo a onda pelo limão
Você vaga querendo fumaça
Eu salto estrelas pelo pulmão

Você se afoga em dívidas
Eu desconto sendo nosso amor
Você descansa, deixa dúvidas

Eu sinto
Você os outros
Eu você

(CM)

O leite derramado


Espalhou-se por todo o corpo
Até cheiro entrou pelo nariz
Encharcando o meu calção torto
Convenceu do cabelo à raiz

Por que o leite chegou até mim?
Era para derramar somente?
Se era para me deixar assim
Por que teria que ser tão quente?

Deste leite não quero o pingo
Mesmo tendo mais leite na caixa
Não limpo, não esqueço, não vingo

Do leite não quero a distância
Mesmo tendo mais leite na vaca
Quero sua outra deslumbrancia.
(CM)

Leite de pedra


Se acolhe.
Obedece o ronco da sua intuição.
Se recolhe.
Poupa a vaca, a cabra, a porca e a galinha.
Se aguarda.
Extrai da efêmera vontade a seiva ampliada.
Se observa.
Relembra as primeiras fases dos quintais da sua vida.
Se pune.
Enfia o dedo sujo nos olhos e arranca a casca das suas feridas.
Se aconselha.
Vença o medo de si mesmo, dia a dia, combata os açúcares distratores!
Se esforça.
Espreme o peito, os olhos, o limão, o côco e a medula.
Se nutre.
Prepara bolo, pão, salada, desejo e cuscuz bem feito.
Se engole.
Nada contra maré sem enjôo.
Se prepara.
Estamina para o vôo além.
Se perde.
Descansa na paz do vento nos cabelos.
Se nega.
Verte a dúvida para a goela dos espelhos.
Se mistura.
Quente como café nas férias de janeiro.
Se expõe.
Serve chocolate aos espiões.
Se gela.
Põe canela nas memórias antecipadamente esperadas.
Se oxigena.
Morno como o ritmo do colo apaixonado.
Se mata.
Sova o creme nata da sobra cinética.
Se ilude.
Passa no biscoito, na pele, na pata.
Se arrisca.
Desliza na superfície espinhosa da hipocrisia.
Se indaga.
Vale o sangue pelo perfume da rosa?
Se valoriza.
Com os pulmões olentes inclina-se aos calmos.
Se exige.
Pisa na areia quente pelando dos egos e seus tons.
Se guia.
Pisa na bosta com sapatos e descalço suspeita dos poderes motores.
Se entristece.
Com amor próprio ostentado.
Se corrói.
Mastiga as fibras da certeza da natureza espelhante.
Se perdoa.
Degustando ser não tendo.
Se cura.
Alinhavando esperança de par em par.
Se lava.
Com lágrimas douradas de um presente divino.
Se sublima.
Com a certeza de ser errante.
Se aceita.
Na vibração de uma foto.
Se acalma.
O filme é uma linda semana.

(CM)

O paraíso somos nós

Como quaisquer outros animais, nós seres humanos possuímos características diferentes entre nós mesmos. Caninos por exemplo apresentam uma grande diversidade de raças as quais variam em pelagem e tamanho dentro de seus próprios grupos. O conhecimento de si mesmo é justamente buscar entender a qual tribo você pertence. E acima de tudo aceitar a diferença.
Na cadeia alimentar por exemplo, possuímos uma vasta estrutura de produção e serviços à disposição das nossas escolhas. Não precisamos defender o que deve e o que não ser consumido. Podemos dar dicas e assim atrairmos e escolhermos com quem dividir os rituais da vida. É difícil para ambas as partes o convívio entre veganos e carnistas num almoço de domingo. Eu me sentiria muito incomodado em dividir a mesa com um urubu. Não o faço. Nem por isso preciso fazer textos, vídeos e obras de arte, mas respeito quem critica o costume desta ave. O urubu lá e eu cá é mais tranquilo para minha jornada e para a dele.
Pássaros sentem que voam, bovinos sentem que morrem, humanos sentem que pensam. 
No topo da cadeia alimentar e produtiva a raça humana começou a sentir que é possível não só pensar mas refletir? 
Que sejamos capazes de escolher com quem conviver sem privar o vôo do pássaro ou a grama do vizinho. Se quisermos tudo e todos caminharemos para o nada na solidão. Estamos sós em nós. Somos poucos de muitos. É preciso coragem para mudar a cada escolha. É preciso paciência para ficar presente. Respeitar o adeus ao passado e tolerar a desconfiança do futuro. Sintonizar-se com o que se transforma a partir das suas ações e escolher o que lhe economiza. Quanto aos delírios das certezas aprendi a seguramente vibrar no alcance, agradecidamente apreciar o que se desperta e despretensiosamente conhecer a ausência.  (CM)